A cidade era pequena, mas o verão se vestia de grande. Desconhecida, nem violência escutara seu nome. O colégio, generoso, tinha amizade boa com surpresa, mais do que com o próprio ensino. É você o menino que escreve?
Os olhos em tropeço, recusando o desafio dos olhos dela, dedos apertando os livros para se livrar das mãos. O pátio em ventania de recreio salvava o silêncio. Ele não acreditava. Ela tinha curiosidade. A notícia das redações de classe tinha chegado à Quarta série.
No início, a poesia fazia o assunto da amizade, depois, a amizade se lambuzava pelos corredores e mal cabia em poesia. Descobriram que eram vizinhos de rua, bastavam duas quadras. Em pouco tempo, viraram também vizinhos de alguma outra coisa intima deles. Mas disso ninguém sabia.
Nas férias, as tardes levavam as crianças pra brincar e depois, exaustas, adormeciam em baixo da noite. O dia não era vigiado pelo relógio, por isso não tinha pressa de ir embora. Ele gostava da praça da Igreja, no alto. Dava pra ver a casa dela. Escrevia-lhe em bilhetes os sorrisos recém-nascidos pela manhã, mãos dos guris serviam correios. Ponderava a brincadeira e paixão, um olho na pipa, o outro ansioso investigava as pistas das respostas, os méritos e aparições. Daí, chegavam poemas em abraços, versos-olhos soprados nas beiradas das ruas – bem pequenos pra que ninguém notasse, - ao escurecer, telefonemas. E as paisagens exclusivamente femininas, ilustradas atrás da voz da ligação. O resto do mundo quase não fazia diferença.
Antes do sono, costurava com lápis acontecimentos na cabeceira. Reeditava episódios, imenso dele mesmo, formatava em letras rabiscadas, trancava tudo no quarto. Mãe insistia na janta. Cauteloso, carregava trechos no bolso, as palavras na ponta da língua. Quando a retribuição vinha forte, encorajava a mão direita a cantar a dela. A esquerda, com medo, se encolhia em aviso. Incerto, corria para longe de si mesmo, mas deixava os ouvidos fazendo companhia. Ela achava que ele fechava os olhos pra imaginar. Criaram o talento de ir para mundos irreais, às vezes, mesmo sem notar, faziam um pouco de esforço e iam. E ninguém era capaz de trazê-los. O tempo, rendido, esperava.
Por alguns anos, ele mesmo esboçou uma eternidade com as letras. No quarto, esboçou as histórias, as ruas, as esquinas. Até que finalmente deixou borrar toda sua obra-prima em lágrimas, quando desiludiram sua inspiração. A família dela ia pra cidade maior, restavam as férias como despedida. Pousou duas fitas que abanavam os cabelos em suas mãos. Eu volto, desejou. E foi de vez, do lugar escondido pela própria geografia. As fitas eram pra não esquecer dela.
O quarto engasgado. O colégio esvaziando de gente, a cidade silenciando seu nome, e os vestígios dela sendo pouco a pouco arrastados pelos ventos nos lugares prediletos. Só não arrastaram os recados gravados em caneta vermelha acenando no caderno. As mensagens nas nuvens zombando distâncias, as fitas descolorindo na prateleira do quarto, e os telefonemas ocasionais, moinhos de ausências. Você lembra que eu te chamava de meu poeta? Eles nunca puderam confessar que se amavam.
Fernando Palma, Dezembro de 2007