sábado, junho 16, 2007

Baseado em Personagens Reais - II

Era um homem dedicado ao destino, fiel, comprometido com a dor. Perdeu a esposa aos quarenta e chorou para sempre. Fim de ano, os filhos traziam alguns presentes para pausar sua melancolia. Depois, rendidos, iam embora carregando consigo a própria saudade. No trabalho, discutia a todo tempo com a solidão, de maneira impiedosa. E ela escutava tudo, sem reclamar. Até que finalmente ele e a solidão saiam para aliviar a relação no boteco. E quando a tarde enfraquecia, voltavam os dois abraçados em embriaguez pelo caminho de casa. Já iam mais de três anos, me peguei bem próximo e não resisti, perguntei se não restava nada. Ele cutucou com os dedos a memória de forma semi-engraçada e foi a única vez que nasceu algo desse sujeito que me fez rir. Respondeu que havia uma esperança num lugar intocável, bem guardada. Tão bem guardada que provavelmente já esquecera onde pôs, deduzi, juntando um pouco de compaixão. Não lembro qualquer outra prosa. Lembro que tinha lá sua postura mais ou menos elegante de curvar o corpo ao caminhar. E reconheço que cultivei uma certa admiração por sua sabedoria individual. Individual porque era sábio consigo, mas os outros pouco percebiam. Ele tinha a inteligência de enganar seu próprio desespero com uma tranqüilidade misteriosa que nascia em volta das rugas dos olhos e ia até os dedos, esticados, em sono profundo. 

Lembro também de tê-lo visto um pouco antes da notícia, sentado numa esquina, se exibindo para a timidez. O copo de cerveja sempre de mãos dadas com ele. Nada mais posso narrar sobre o momento, é uma pena. Na verdade, a vida já o tinha deixado há muito tempo, o tempo que se atrasou em pedir que a morte viesse ocupá-lo.

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19 Comentários:

Blogger Leticia Gabian disse...

É forte e densa a sua escrita.
Que bom que me descobriu, assim pude te conhecer e visitar o seu blog (já virei fã).
Beijinhos

sábado, 16 de junho de 2007 às 20:28:00 BRT  
Blogger Antonio Junior disse...

Um enredo bem tramado. O narrador insiste em controlar demasiadamente suas personagens. Isso é natural e aceitável. Quem não gosta de ser Deus de quando em vez? A serenidade da personagem é o diferencial da narrativa, apesar dos eventos ruins da vida. Quase um Roquentim de Sartre. Há braços!



Antônio Alves
No Passeio Público
Postagens às quartas e domingos

domingo, 17 de junho de 2007 às 08:14:00 BRT  
Blogger Lady Vania de Tróia disse...

Adorei.Texto denso e compacto.Um verdadeiro réquiem à solidão,saudade e ao amor também.Como sempre,vc viaja e embarca junto dos escritos sempre bem eleaborados do Fernando.
Beijos entrelinhas da sua fã n.01.
Lady Vania.

domingo, 17 de junho de 2007 às 11:17:00 BRT  
Blogger ~*Rebeca*~ disse...

Fernando, lutar contra a própria dor é uma luta interminável.
Essa morte tão atrasada, talvez seja a maneira certa de viver uma dor, que de certa forma, alimenta.

Beijo nesses dedinhos que escrevem tão bem sobre o amor.

Rebeca

domingo, 17 de junho de 2007 às 14:07:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Olá Fernando estava vendo um video e acabei vindo parar aqui. e ainda estou lendo muito. Voce tem uma escrita interessnte e riquissima apesar de parecer jovem parabéns!

domingo, 17 de junho de 2007 às 22:26:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Treiste este...mas eu gsotei


Beijos da Gabi

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 08:52:00 BRT  
Blogger Flor disse...

Olá, encontrei teu blog passeando pelo orkut, confesso que foi uma grata surpresa, gostei daqui, espero que não se importe que eu apareça de vez em quando para fazer uma visitinha hehehe

abraços e tenha uma ótima semana.

Adri

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 09:43:00 BRT  
Blogger Teresa Durães disse...

Gostei do texto, bastante. O retrato da solidão enfrentada.

boa tarde

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 10:09:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Brilhante!

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 10:38:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Oi Fernando,
Queia aproveitar o ensejo e convidá-lo para fazer parte de uma antologia literária luso-brasileira que será editada pelo clube Scriptum. Para maiores detalhes visite o site
http://clubescriptum.webtekk.org/index.html
Se vc se interessar, estou por aí para retirar qualquer dúvida...
Um grande abraço

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 10:45:00 BRT  
Blogger GarçaReal disse...

Que bem descrita esta tão profunda solidão...Ela quando chega e se instala é de uma força tremenda...
Obrigada pela visita.
Gostei de aqui vir e te ler.
Voltarei.
bj

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 10:51:00 BRT  
Blogger Maria Clarinda disse...

Adorei andar por aqui.
Voltarei.
Jinhos

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 10:53:00 BRT  
Blogger Unknown disse...

Que morte difícil quando se teima na vida.
Excelente!
Abraço.

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 14:26:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Nem mais oq falar da intensidade dos teus textos. Ando repetitiva nos comentários.

Boa semana!

Beijinhossss

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 15:07:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Forte e duro, mas muito poético. Beijo.

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 23:05:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Exelente texto, fernando. escrito por quem entende

Abraços,
Marcos J.

segunda-feira, 18 de junho de 2007 às 23:16:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

E este homem forte e ao mesmo tempo sábio parece com o homem que eu cito em meu último post.Impossível não associar os dois textos! Há uma espécie de inconciente coletivo a pairar sobre nossas letras? Lindo o texto Nando.É incrível como o mesmo amor que faz sonhar é o mesmo que um dia pode nos fazer chorar e sofrer.Coisas da vida...

terça-feira, 19 de junho de 2007 às 00:00:00 BRT  
Blogger Maresia e Luar disse...

Infeliz daquele que se deixa levar pelo conformismo e para de lutar a favor da sua felicidade.
Excelente texto numa prosa magnífica.
Um beijinho.

terça-feira, 19 de junho de 2007 às 11:38:00 BRT  
Blogger Willian Machado disse...

exelcior!um termo ,acredito ,bem etimologizado.

terça-feira, 19 de junho de 2007 às 17:24:00 BRT  

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