terça-feira, janeiro 02, 2007

Restos no Espelho

Estendida de pé, Priscila observava o espelho refleti-la por inteira. Os olhos embaraçados na caída da noite, enquanto rastros de sorrisos formigavam os lábios, tentativa de juntar alguma felicidade acovardada pelo dia que ia. Estendida de pé, buscava na imagem refletida partes de si, pedaços que ocupassem vazios sem endereços.
Estendida de pé, ela observava o espelho refleti-la por inteira e comparava sua imagem de vinte e seis anos, agora completos, à de menina que deixou no passado, como a fotografia esquecida na estante da sala. Mas não comparava o corpo e traços envelhecidos da face e sim o que havia por trás da obstrução dos olhos. A paixão de criança era o cinema, recordava, o sonho de ser atriz a tomava euforia de quem já fora a própria atriz. Por inocência ou por sabedoria juvenil, ela não distinguia a felicidade de sonhar com a felicidade de ter um sonho realizado. Para a menina, era a mesma quantidade de alegria. E Priscila não sonhou pouco. Sonhou sonhos diferentes, às vezes estranhamente irreais. Sonhou distante. Então, com o virar dos anos e das páginas do diário, muitas vezes inundou o banheiro em lágrimas, filtrando alguns pelos cantos dos olhos até convertê-los parcialmente em realidade. Nem ela mesma saberia explicar onde ficaram perdidos os ideais de carreira de atriz entre tantas outras fantasias. Simplesmente os deixara dissolver, despedaçar.
Estendida de pé, ela observa o espelho refleti-la por inteira, reproduzindo com os olhos de dentro sua própria imagem de menina “É um encantamento. Na escola, todos adoram!” exibia-a o pai aos parentes, mais embriagado de orgulho que da própria cerveja, nos domingos. Com dez anos de idade, não havia motivo para dar atenção àquele tipo discurso-chato de família, era nova demais para interessar-se pela beleza que existe no simples fato de ser adorada por alguém. Priscila cresceu esquecendo em cantos incertos pedaços da menina de colégio que extasiava os olhos do pai. Distraída, deixou cair alguns pelo caminho do ginásio, permitiu que as mãos do coração largassem outras partes depois dos quinze, foi perdendo-se, pedaços, pedaços, e aquela frase de infância começara a ter significado maior em sua consciência, talvez a alegria do pai não fosse mesmo tão boba. Algum significado ia se criando justamente porque com o tempo já não se sentia merecedora do gesto com mesma dose de justiça. Confusa disto, confusa de si, não notou que foi desfazendo-se ainda mais em ínfimas partes invisíveis, migalha a migalha, como quem fora esfarelando por dentro. Segundo grau. Faculdade. Ainda guardou amostras quais julgava bonitas e embalou em papéis coloridos para desperdiçar nas mais altas apostas de amores. E apostou sem medo. A cada nova paixão, uma cor de embalagem e novos pedaços deixados, nestas ocasiões tristemente maiores. Existiu também um pouco daquela alegria inocente de infância nos embrulhos dos amores de Priscila. A mesma alegria inocente dos sonhos de atriz quando menina.
Estendida de pé, ela observa o espelho refleti-la por inteira, perguntando-se onde poderia ter deixado escapar tantas partes importantes do seu corpo interior. O que a vida lhe dissera ou fizera para enganá-la a ponto de fazer doar-se e desfazer todas aquelas crenças e sonhos que faziam de Priscila muito mais Priscila. Estendida de pé, Priscila observa o espelho a refleti-la por inteira, e chorava; porque ela não era mais inteira. Ela era a sobra. 
Fernando Palma, Setembro de 2006

PS: Texto baseado em um comentário de Mônica Goes aqui no blog

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19 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Ei Nando! Texto forte e filosófico! A metáfora do reflexo no espelho é fantástica. Remeteu-me a Nietzsche: "Conhece-te a ti mesmo" e "Você viveu sua vida ou foi vivida por ela?". Pra refletir... Bjim e parabéns!

quinta-feira, 5 de outubro de 2006 às 18:17:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Eu já amei tanto e tantas vezes e tantas pessoas.
E das lembranças dos amores que tive, tudo o que posso dizer é que os teria TODOS de novo.
Amores são sempre bem vindos nesse velho coração. E meus retalhos não são remendos, é que as minhas sobras se misturam às sobras de todos que já amei e sei que hoje sou maior porque apostei. Ah, Fernando, querido amigo meu, se o amor é amor, ele não leva de nós, ele nos traz...e sempre muito mais!

quinta-feira, 5 de outubro de 2006 às 21:26:00 BRT  
Blogger Mônica Góes disse...

Talvez se você me conhecesse tão bem quanto muitos me conhecem, não retrataria tão perfeitamente como me sinto. Simplesmente perfeito!

E obrigada pela honra!

sexta-feira, 6 de outubro de 2006 às 01:20:00 BRT  
Blogger Mônica Góes disse...

P.S. Quanto ao texto de Skakespeare, tive ele colado em vários murais da minha vida por vários anos... de repente ele sumiu... mas acredito que o estou retomando.

sexta-feira, 6 de outubro de 2006 às 01:24:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

olhamos no espelho ...
e ele nos revela tantas coisas!

Bom final de semana!

sexta-feira, 6 de outubro de 2006 às 11:48:00 BRT  
Blogger Leila Andrade disse...

Penso que nunca é tarde para recompor pedaços, mesmo quando a vida um furacão que não espera.
beijomeu

sexta-feira, 6 de outubro de 2006 às 17:19:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

certamente por vezes ( e muitas vezes) é mais fácil não se enxergar refletida pelo espelho ou por outrem

sexta-feira, 6 de outubro de 2006 às 17:54:00 BRT  
Blogger dade amorim disse...

Sempre sobram pedaços da gente, aqueles que não se espera mais poder realizar. Mas é a vida, Fernando. Até as células se renovam quando chega a hora... Um beijo, obrigada pela visita, viu?

sexta-feira, 6 de outubro de 2006 às 19:18:00 BRT  
Blogger dade amorim disse...

Sempre sobram pedaços da gente, aqueles que não se espera mais poder realizar. Mas é a vida, Fernando. Até as células se renovam quando chega a hora... Um beijo, obrigada pela visita, viu?

sexta-feira, 6 de outubro de 2006 às 19:18:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Fernando, um texto visceral. Pedaços perdemos, pedaços encontramos e assim vamos nos constituindo e, muitas vezes, nos descontituindo. Texto instigante. Grande abraço.

sábado, 7 de outubro de 2006 às 10:00:00 BRT  
Blogger Segunda Pele disse...

Eu tô virando fã!
Palmas pra vc! Muito bom mesmo!

sábado, 7 de outubro de 2006 às 11:04:00 BRT  
Blogger Pri disse...

Essa minha xará é muito parecida comigo =)
Ótimo texto, adorei!
E desculpe a intromissão no seu blog...

sábado, 7 de outubro de 2006 às 15:58:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Ando sentimental...
Gosto disso.
Ando repleta de sentimentos.
Antes isso.
Ando e tenho andado assim.
Melhor isso.
Prefiro assim do que render-me ao amargo e ao vazio.
Não quero, não vou e não posso me azedar.
Heureca, finalmente heureca!
Enfim, eis me aqui em sentimentos e sentimentalidades....

domingo, 8 de outubro de 2006 às 00:58:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Nossa...

domingo, 8 de outubro de 2006 às 11:25:00 BRT  
Blogger supernova.high disse...

conflitos, sempre conflitos... eles que nos trazem à vida!

Muito bom!
Bjs

domingo, 8 de outubro de 2006 às 17:57:00 BRT  
Blogger Mônica Góes disse...

Hoje estou mais Priscila como nunca... irrito-me por não saber fazer versos... versos, às vezes, dizem sem dizer o que sentimos... Invejo-te... nõa aquela inveja nociva... de querer que o outro não tenha o que possui... aquela invejinha de não saber fazer o que o outro saber para extravasar sua angústia criptografada em palavras... até mesmo a angústia alheia... aquela que não lhe pertence...

Ah! Quem me derá saber fazer versos...

segunda-feira, 9 de outubro de 2006 às 01:26:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Olha aí, Fernando, que texto lindo, retrato fiel dos pedaços que se desprendem de nós pela vida, deixando marcas indeléveis de angústia, de frustração, de desencanto. Claro que há pedaços que, ao se desprenderem, resultam em alívio e em expectativas de felicidade. Gostei do seu texto, bem arquitetado, bem marcado pela repetição daquele "Estendida de pé, ela observa o espelho"... Gostei. Parabéns.

segunda-feira, 9 de outubro de 2006 às 08:21:00 BRT  
Anonymous Anônimo disse...

Ah Priscila...feita de vários pedaços/fagulhas que não são seus e ao mesmo tempo são tão intensos.Ah,Priscila que arde em chamas frente ao espelho e ao mesmo tempo se põe feito concha na cama a sonhar com o passado de menina...Ah Priscila,feita de sonhos eternos e desfeita por estes mesmos sonhos...

segunda-feira, 9 de outubro de 2006 às 12:41:00 BRT  
Blogger Claudio Eugenio Luz disse...

Muito bom! Para fazer-se inteira é necessário reunir todos os pedaços.

hábraços

segunda-feira, 9 de outubro de 2006 às 14:22:00 BRT  

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