terça-feira, outubro 06, 2009

Cotidiano - II (Parte- II)

O momento do almoço era o mais importante. Distraído, tagarelava com algumas idéias felizes que ocupavam a passividade do instante. Conversava consigo, o diálogo com colegas apenas mantinha as aparências. O movimento ávido no shopping emprestava um pouco mais de vida à rotina ativa e empírica do trabalho cansado. O horário tinha liberdade para acontecer, por isso ele gostava. Sabia que qualquer destes instantes fatalmente seria um pouco mais diferente, um acidente feliz, inexplicado, um reencontro. O acaso. Não era exatamente acaso, porque ele já sabia. No entanto, não havia motivo ou prova para justificar como ou por que saberia, apenas sabe. Porque ele aprendeu a acreditar nas coisas sem haver razão e dessa maneira era mais bonito e verdadeiro. Bastava alguma força do querer, a realidade não é tão difícil . Sua crença sempre fora intocável e paciente, assim como a serenidade usada todos os dias para cuidadosamente alternar os três itens que mais gostava das opções de refeição. Como para ir ao cinema com o carro que só usa fim de semana, como para calcular os gastos, pagar as contas. Para trabalhar.

Até o fim de expediente, resistia ainda tranqüilo, mesmo com presença fática da canção lhe vigiando a memória. Mesmo com satisfação óbvia apregoada ao semblante dos trabalhadores esforçados, transpirando, empurrando o resto do dia para chegar logo às dezoito horas. Acima de tudo e todos, permanecia sereno e paciente na mesma posição que trabalha durante toda a semana. E a satisfação pela Sexta-feira permanecia linearmente em duvida a quem quer que o visse, calmo. Estaria feliz como os demais? Seria sua felicidade serena?


O metrô andava mais depressa neste dia particular. Debaixo do braço, um vinho suave e meio maço de cigarros de menta guardados da semana. O vinho era o mesmo, uma única garrafa, sempre.



O ruído da vizinhança intercalava os trechos mais sonoros do filme no apartamento, mesmo com as caixas de som recém-compradas que ampliaram excitadamente o volume das sessões de Sexta. Os intervalos quase ociosos de dispersão não eram desperdiçados. Usava para ensaiar alguns momentos de futuro, baseado pelo que passava na historia. Ensaiava acontecimentos. E diálogos de cinema que guardava para um dia usar em alguém. Preferia os romances, como os livros, mesmos os menos atrevidos, onde tudo parecia fácil e compreensível: para todos haveria uma oportunidade, um reencontro, aquele acidente feliz. Como no shopping. A vida realmente tem liberdade para acontecer. Os finais das historia poderiam ganhar um pouco mais de sentido muito em breve também para ele, sim, a Sexta-feira seria o mais particular ainda dos dias. O trabalho não precisava ser sempre o mesmo. E teria com quem dividir alguns sonhos semi-perfeitos. E quebraria estrategicamente a tradição de uma garrafa. Tudo, tudo seria com um pouco de espera e concentração do querer. Sabia.

Apagou ultimo cigarro alguns minutos atrasados em relação ao tempo da cena final. Respirou um pouco do ar que lhe restava, reproduzindo com a boca uma expressão que lembra bem um bocejo. Buscava o sono.

Fracassou ao tentar desligar a TV. Acabou dormindo com o volume bastante alto, para atrapalhar a canção triste-bela que, por dentro, sobreviveu durante todo o dia.





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1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Muito bom texto, Fernando.

Marcos

segunda-feira, 19 de outubro de 2009 às 20:23:00 BRST  

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