Cotidiano - II
Era uma canção que nem sabia nome, mas tomava de tempos em sua mente, ocupava qualquer pensamento. Chegando no trabalho, disfarçado com sua roupa formal para dia de semana, tentava fazer sentido a canção sem nome.
O movimento ávido no shopping emprestava um pouco mais de vida a rotina ativa e empírica do trabalho cansado. O horário tinha liberdade para acontecer, por isso ele gostava. Não era exatamente acaso, porque ele já sabia. No entanto, não havia motivo ou prova para justificar como ou por que saberia, apenas sabe. Porque ele aprendeu a acreditar nas coisas sem haver razão e dessa maneira era mais bonito e verdadeiro. Bastava alguma força, a realidade não é tão difícil. Sua crença fora intocável e paciente, como a serenidade usada todos os dias para cuidadosamente alternar os três itens que mais gostava das opções de refeição. Como para ir ao cinema, com o carro que só usa fim-de-semana, como para calcular os gastos.
Até o fim de expediente, resistia ainda tranqüilo, mesmo com presença fática da canção lhe vigiando a memória. Mesmo com satisfação óbvia apregoada ao semblante dos trabalhadores esforçados, transpirando, empurrando o resto do dia para chegar às dezoito horas. Acima de tudo e todos, permanecia sereno e paciente, na mesma posição que trabalha durante toda a semana.
Muitas vezes, ele vivia como um observador do mundo. Um telespectador paciente. Assistia as pessoas sem se deixar perceber, via e ouvia a tudo tentando se fazer pouco interferente, como quem já tivesse vivido o que ocorre ao redor. Como no cinema. Como quem tivera revendo algo que com saudosismo, com atenção, do lado de fora.
O metrô andava mais depressa neste dia particular. Debaixo do braço, um vinho suave e meio maço de cigarros guardados da semana. O vinho era o mesmo, uma única garrafa, sempre.
No sofá, ensaiava acontecimentos dos filmes. E diálogos de cinema que guardava para um dia usar em alguém. Preferia os romances, como nos livros, mesmos os menos atrevidos, onde tudo parecia fácil e compreensível: para todos haveria uma oportunidade, um reencontro, aquele acidente feliz. Como no shopping.
Apagou o ultimo cigarro, espirou um pouco do ar que lhe restava, reproduzindo com a boca uma expressão que lembra bem um bocejo.
Fracassou ao tentar desligar a TV. Acabou dormindo com o volume bastante alto, para atrapalhar a canção triste-bela que, por dentro, sobreviveu durante todo o dia.
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